sexta-feira, 28 de abril de 2017

Auto da secretária

Andei observando minhas planilhas de atendimento no consultório e concluí que sexta-feira é um dia bastante inferior aos outros dias. Quase morto. Além disso, poxa!, é véspera de sábado, e se eu parar de atender às sextas-feiras ainda ganho um dia a mais para passar o fim de semana em Angra.
Nenhum outro colega subloca horário às sextas-feiras.
Chamei minha secretária para conversar sobre o acordo trabalhista.

- Então... - expliquei a situação e propus – Você tem direito a 30 dias de férias por ano. A gente vai dividir esses 30 dias em 30 vezes, em 30 sextas-feiras. Considerando que o ano tem 52 semanas, nas outras 22 sextas-feiras você vem e faz uma faxina, arruma as coisas, atende telefone. Eventualmente alguns feriados vão cair em uma sexta-feira, e esses vão ser considerados dias de férias.

- Mas doutor... é que eu planejava passar as férias junto com minha família em São Luís!

- Que ótimo! Você pode viajar na quinta-feira à noite e voltar no domingo. Vai poder viajar trinta vezes no ano! Sua família vai adorar a notícia. Mas eu preciso que você esteja de volta na segunda-feira, viu?

- Doutor, acho que esse acordo não me interessa não. Um dia não é férias. O fim de semana eu já ia ter de qualquer jeito. E eu nem tenho dinheiro suficiente para comprar 60 passagens!

- Você é boa mesmo de negociação, hein? Vamos fazer o seguinte: eu não conto os dias de feriado como férias. Você fica com os feriados para você. Sexta-feira Santa, por exemplo. Você já reparou que 07 de Setembro, 12 de Outubro e 01 de Novembro caem sempre no mesmo dia da semana? Quando cair na sexta-feira, você ganha três fins de semana prolongados a mais. E Natal... E Ano Novo... Além disso, deixa eu te ensinar uma coisa: depois de algumas idas e voltas, daqui a pouco você acumula milhas suficientes para nem pagar pela próxima viagem.

- Ainda acho que não estou interessada nesse acordo. Prefiro minhas férias inteiras. Ou, pelo menos, que eu possa dividir em duas vezes de 15 dias.

- Sabe... é uma pena. A taxa de desemprego anda tão alta, tem tanta gente de olho no seu emprego... Você é bonitinha, arrumadinha, trabalha bem, é organizada... eu preferia não perder você. Mas não dá pra conversar com você, você não me escuta! Eu estou te mostrando por A mais B como isso vai ser melhor pra você, mas é muito difícil de entender. Mas também... se entendesse fácil não era secretária, né?

Passou um espírito e me contou

Entram no consultório a Sra. Iria e a filha.

- Iria - ela me corrige, acentuando o I maiúsculo - Mas não tem problema. Todo mundo erra meu nome. Me chamam de Maria, Miriam, Mirtes... - e a lista de nomes foi pouco a pouco se afastando do nome certo.
- Mirtes? Nossa, nada a ver! Daqui a pouco vão chamar de... - pensei um nome muito distante de Iria, o mais distante ...que eu pude encontrar em poucos segundos - Daniela.

A filha arregalou os olhos:
- Daniela sou eu!

Fiquei pensando se em algum momento eu cheguei a perguntar, se ela chegou a me dizer.
Não.
Passou um espírito e me contou.

quarta-feira, 26 de abril de 2017

Escola das Maravilhas

Atendendo minha paciente Alice. Não posso mudar ou omitir o nome porque a história depende disso.

- Você estuda onde, Alice?
- ...
- No País das Maravilhas?
- Quase isso. Só falta a diretora ser a rainha cabeçuda. Cortem as cabeças!
- E o Gato, é quem?...

Ela pensa por 10 segundos.

- O inspetor, que aparece de repente, do nada, com aqueles olhões, onde a gente está.

terça-feira, 4 de abril de 2017

De volta ao ambulatório

Estamos indo de volta pra casa...
Tralala lalá laláá la
Tralala lala láá

De volta ao ambulatório de Endocrinologia do Hospital Cardoso Fontes.

Primeiro paciente....
Paciente de primeira vez.
22 anos, encaminhado por estar em uso de Nebido. Nenhuma informação a mais.

Primeiro pré-diagnóstico: bomba para academia.

Chamo o rapaz. Ele entra.
Baixa estatura.
Segundo pré-diagnóstico: deficiência de GH com hipogonadismo.

- Tudo bem? Em que posso ajudá-lo?
- Eu cheguei ao Rio há 1,5 mês, e preciso continuar a usar Nebido.
- Vi no encaminhamento que você estava usando. Que tipo de tratamento você está fazendo?
- Eu sou trans.

I couldn't see it coming. Jamais teria imaginado se ele não tivesse dito.

O que, 1) foi um ponto positivo, porque não fosse uma consulta médica, eu não precisava ter imaginado, não precisava ter sido dito. Era um rapaz. E pronto.
No entanto, 2) também foi um ponto negativo, porque me mostrou na cara como um médico fora de um serviço de referência está desacostumado a pensar nessa possibilidade.

Prescrever o Nebido, fazer a hormonização, é a parte mais fácil da história. Mas a atenção em saúde para a pessoa trans precisa ser, necessariamente, multidisciplinar. Deve envolver, além do endocrinologista, uma equipe com atenção em Psicologia, Assistência Social, Urologia, Ginecologia, Cirurgia Plástica, e muitas vezes até mesmo profissionais do Direito.

segunda-feira, 6 de março de 2017

Podologia tântrica

Paciente de 63 anos, diabético tipo 2 de longa data, em consulta de primeira vez comigo.

- Você sente dor, dormência, formigamento nos pés?
- Eu faço as unhas no podólogo, porque tenho medo de fazer eu mesmo...
- Um medo justo....
- Então... quando ele passa a lixa, eu sinto...
- ... dor?
- Não. Tenho uma sensibilidade forte, como um orgasmo.

Minha reação foi imediata:
- Esse podólogo é bom, hein?

Ele morreu de rir. Eu também.
Ainda bem.

sexta-feira, 3 de fevereiro de 2017

Não se faz piada com doença

Em 04 de Janeiro de 1996 minha avó foi encontrada no chão de seu quarto desacordada. Tinha sofrido um AVE hemorrágico por rotura de um aneurisma cerebral. Sobreviveu durante 7 anos restrita ao leito, sem qualquer comunicação com o meio externo senão uns espasmos faciais que ora eram interpretados como dor, ora como algum tipo de compreensão por parte dela. Provavelmente eram movimentos involuntários sem maior significado. Minha avó morou em minha casa com equipe de homecare, com toda assistência de que ela precisava. Vez ou outra internava, mas passou a grande maior parte do tempo em casa conosco.

Desde que dona Marisa foi internada, recebi de grupos de Whatsapp diferentes as imagens de sua tomografia. Recebi piadinhas. Recebi compartilhamentos de textos sobre ela.

E lembrei da minha avó.

Minha avó foi professora e diretora de escola municipal.
Imagino se ela chega ao hospital e um médico de plantão é ex-aluno dela. Reconhece a professora. Envia para o grupo de Whatsapp de ex-alunos do colégio as imagens da tomografia dela. Apesar de ela ter sido uma pessoa formidável, imagino que uma diretora não seja unanimidade entre os alunos. Um ex-aluno lembra daquela vez em que ele foi suspenso (sem lembrar o porquê de ele ter sido suspenso). E completa se dizendo satisfeito de ela ter tido esse desfecho.

Imagino a troca de mensagens escapando às paredes virtuais do grupo. E sendo compartilhadas por aí afora. E chegando a mim, neto, à minha mãe, filha, à minha bisavó, mãe. Imagino o quanto tudo isso aumentaria ainda mais a nossa dor.

Um abraço derradeiro, dona Marisa.
Um abraço em toda a família, em todos os amigos, em todos os companheiros de luta.
Se for possível, abstraiam de tudo que se fala por aí. É difícil, eu imagino. E só fazem aumentar a dificuldade de uma hora dessas.

sexta-feira, 13 de janeiro de 2017

Visita à enfermaria de Pediatria

Quarta-feira no fim da tarde resolvi fazer uma visita à enfermaria de Pediatria. Conversei com as mães e acompanhantes, conversei com as crianças (pelo menos com as que falam).

Na enfermaria de berços, cinco crianças.
Um menino de 2 anos com diabetes tipo 1 recém diagnosticado. Está sendo acompanhado pela Dra. Luciana Porto. Sabe, eu sou da Endocrinologia Pediátrica, mas estou na Direção do hospital. Se fosse uns meses atrás seria eu acompanhando o seu filho. Mas com a Dra. Luciana você está muito bem, que ela é ótima!

Uma menina de 5 meses internada há dois, nascida pequena para a idade gestacional, com 40 semanas, 39cm e 1800g. Por que será que a bebê PIGminha me chamou à atenção, né? A diferença entre ela e Letícia é que Letícia está recuperando o crescimento, e ela não. É tão miudinha! Outra diferença: bebê é carequinha, sem sobrancelhas e sem que Letícia está recuperando o crescimento, e ela não. É tão miudinha! Bebê acabou herdando umas roupinhas de Letícia que eu levei para doar no hospital.

Na enfermaria de camas, outras cinco crianças. Mais parecia um salão de jogatina do que uma enfermaria de hospital. Dos cinco, três estavam jogando joguinhos no celular.
Fui falar com o menino no leito do canto.
O que houve com você?
Levei um tiro.
E me contou a história. Estava atravessando a Grajaú-Jacarepaguá, passou um carro, um homem à janela abriu fogo e o acertou pelas costas. E tal e coisa e coisa e tal. Lá pelas tantas, Tio, ele me perguntou, você é polícia? Nãaaaaao, respondi, eu sou médico. Por quê? Você está fazendo tanta pergunta! Não não, sou médico, sou da Direção do hospital e estou fazendo uma visita. Mas posso contar sua história para a polícia... se você deixar. Eu deixo, tio.
O que você vai ser quando crescer?, eu perguntei. De uma da manhã ao meio-dia vou ser Urbe (sic). O que é Urbe, interrompi. Urbe! Motorista de Urbe. Aaaaaah tá... Uber. Então, tio... de uma ao meio-dia vou ser motorista de Urbe. De meio-dia às três da tarde, bombeiro. Das três às seis, polícia. E das seis até meia-noite, motorista de táxi. Mas rapaz, a que horas você vai comer, dormir, brincar com seus filhos...? É verdade, né, tio... acho que não vou ser motorista de táxi não. E cara, vamos rever isso aí, que não dá pra ser bombeiro de meio-dia às três. Ou você é bombeiro ou não é.

Pessoas. A gente não pode esquecer que o que a gente faz é pelas pessoas. Pelas vidas que estão ali. Tantas. Tão diferentes. Tão únicas.